A Forja Elementar
Cap. XIV:
A morte de Árktos arrefeceu severamente o entusiasmo de Chang Ji com seus planos de disseminar o domínio da Técnica Elementar por toda a Aerópolis, de recorrer do indeferimento que continuava a impedir de executá-los. Ainda que sua rígida disciplina monástica não permitisse, ele havia se deixado abater de maneira visível, a ponto de cancelar por tempo indeterminado as práticas de sua pequena e agora permanente e dolorosamente desfalcada equipe na Escola Elementar. Deixara de lado seus importantes estudos sobre os projetos de treinamento instantâneo de massa mais adequados à Técnica Elementar e se afastara de suas imprescindíveis negociações junto aos oposicionistas, no congresso, e à comissão de administradores de políticas e recursos públicos destacada para analisar suas novas propostas e requerimentos de construção de outras escolas elementares a fim de formar inicialmente um grande corpo de treinadores da referida técnica. Árktos era seu braço direito nessa grande e decisiva empreitada, um amigo indispensável com quem podia contar para o que desse e viesse. Internado e com bandagens regenerativas por todo o corpo, Karai, após se recuperar, lamentou desgostosamente não poder ter comparecido nem ao sepultamento do próprio pai. Arrasados emocionalmente, decorridas algumas semanas da tragédia, ele e o irmão caçula, sobretudo em respeito à memória do pai, acabaram com todas as suas mesquinhas desavenças e diferenças e voltaram a se conciliar, trazendo algum alento até para o luto acachapante de sua mãe. Condoído pela enorme desgraça desfechada contra seus mais próximos amigos, Gaio também passou sorumbático os dias que se seguiram. Compreensiva, Maia sofreara por um momento suas relações impetuosas para com ele a fim de não constrangê-lo. Mas Gaio tratou logo de explicar em pormenores à amada o que significava tudo aquilo de aparência sobrenatural que ela presenciara na Lagoa dos Amantes. Inclusive, Gaio logo providenciou que Maia fosse iniciada o quanto antes no domínio da Técnica Elementar, na Escola Elementar, por ele mesmo.
Anarco e Atlas atravessavam um amplo vestíbulo de uma imensa mansão de um lugar longínquo, isolado da Cidade Aérea e cercado por uma floresta de árvores muito altas. Uma portentosa decoração com uma miríade de estátuas em gesso e mármore, sobre pedestais, representando em detalhes a beleza e a elasticidade dos corpos jovens e nus humanos enlaçados nas mais variadas posições de consumação sexual do manual do Kama Sutra, chamava-lhes a atenção enquanto passavam por um comprido e suntuoso tapete vermelho e rumavam para uma larga escada de pedra que dava acesso aos aposentos do andar de cima. No centro do vestíbulo, ainda cruzaram com uma escultura marmórea maior que as demais: um homem e uma mulher nus, cingidos pelas laterais, ele curvando sua cabeça para beijá-la na Primavera Eterna, de Auguste Rodin.
Atravessando por uma estupenda porta dupla de mogno emoldurando o vitral de uma réplica da pintura da deusa Vênus, de Michelangelo, Anarco e Atlas adentraram uma sala de escritório mobiliada com mobílias de entalhes sofisticados, tons vinhos e contornos curvos. À frente, um homem em pé, misteriosamente de costas, com as mãos para trás e exibindo um ar imponente ao manter a fronte ligeiramente erguida – trajando uma túnica com uma cor escurecida, mas berrante –, os aguardava do outro lado de uma mesa de tampo curvilíneo de marfim sintético. Mesa que, Anarco observou curioso, estava encimada por cinco estranhas pedras diáfanas com os formatos geométricos dos cinco sólidos de Platão. Todas do tamanho de laranjas, ainda continham o que pareciam ser chips incrustados no interior.
– Sentem-se, meus caros, solícitos e futuros parceiros da longa empreitada, inicialmente escusa, que poderemos firmar doravante – disse o homem com voz grave e limpa, ao se virar.
– Assurbanipal! – exclamou Anarco admirado, mas sem abdicar daquele seu típico e inseparável ar zombeteiro que devia ser traço intrínseco do desenho de seu cenho seja contraído ou relaxado. Assur, que aparentava nítida e incrivelmente haver remoçado mais de meio século para os padrões comuns, indicou cortesmente os assentos acolchoados e de espaldares altos às suas duas visitas. Atendendo ao aceno, Atlas e Anarco se sentaram – o primeiro inseguro e o segundo, ao contrário, refestelando-se – ante a mesa do anfitrião.
– Parece, então, que a violação dos arquivos do Grande Servidor resultou na maior conquista do homem: a do elixir da juventude eterna! – disse novamente Anarco, meio provocativo.
– Pode ter certeza de que a técnica do nosso querido e falecido Tupã, ela, sim, que é a maior e derradeira conquista da espécie humana, o nosso último estágio na evolução! – disse Assur entusiasmado. – Sou por inteiro uma testemunha disso. Remocei-me tanto por fora quanto por dentro. Estou plenamente revigorado e capaz de transar sete dias por semana! Não quero mais nada, a não ser a estabilidade das eras convenientemente subvertidas, pervertidas.
Assur também se acomodou em sua cadeira, de seu lado da mesa. Apesar de tudo o que testemunhara acerca das façanhas incríveis proporcionadas pela Técnica Elementar, Atlas tinha uma cara de quem custava a acreditar no que via diante de si: o velho curvo e combalido reitor de sua universidade não apresentava mais nem um único vinco no rosto, ficando, por isso, completamente irreconhecível agora. – Ainda não viu nada, meu caro – respondeu com mistério Assur à fisionomia cética de Atlas. – Esta maldita sociedade conservadora, que, através do parvo argumento de que não devemos, por meio da ciência, buscar viver indefinidamente, a fim de que, dessa forma, permitamos o nascimento das novas gerações com o ideal e salutar objetivo de substitutas das anteriores, estupidamente desconsiderou minhas avançadas técnicas de rejuvenescimento, todas, inclusive, comprovadas nos meus mais de trezentos anos... embora eu diga que já não aguentava mais carregar todo o seu peso em minhas costas. Mas, agora, mediante a Técnica Elementar... ou os impulsos eletromagnéticos moduláveis, governáveis e amplificáveis que saem de minha mente e atravessam todo o meu corpo..., posso governar a apoptose e, por meio das células-tronco, a regeneração celular de qualquer parte minha. Recapeei os telômeros de meus cromossomos. Para acelerar o processo de meu rejuvenescimento, ao passo que ia simplesmente destruindo muitas das outras minhas células por meio da apoptose... esta a reprogramação do DNA de certas células minhas com intuito de que morressem... por meio da apoptose controlada por vírus inofensivos e polarizados inoculados em mim, eu logo ia me regenerando com seguidas injeções de soluções de células troncos igualmente polarizadas através de nanotecnologia. Polarizadas, porque, assim, eu passei a poder governá-las por meio do eletromagnetismo de precisão aparentemente sobrenatural da Técnica Elementar. Ou seja, eu já tinha a técnica de rejuvenescimento, só precisava aperfeiçoá-la por meio da precisão, que obtive finalmente com a Técnica de Tupã. Como lhes disse, meu maior receio hoje é não poder manter a estabilidade ou, mesmo, a integridade das eras que se sucederão e as quais pretendemos “corrigir”, acrescentando um pouco de “emoção”, para o bem de todos. Foi para isso que os chamei à minha bela casa. Para informá-los de que algo ou, mais exatamente, alguém poderoso em desmedida nos ameaça com a desintegração integral. Um inimigo apto a não deixar átomo sobre átomo numa batalha até as últimas consequências. Um inimigo que, em síntese, conhece a Teoria M e pode agir tal qual um deus com d maiúsculo. Um inimigo da existência!