A Tempestade de Fogo

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Cap. III:

– Você já deve ter lido, em vários lugares, sobre coisas inacreditáveis, absurdas, que várias pessoas têm aprendido a fazer, para o bem e para o mal (agora, na verdade, me parece que muito mais para o mal), por meio do simples pensamento – dizia Ábaco à Eneida. Os dois, mais o restante do grupo bem mais à frente, seguiam com seus pesados fardos às costas pela avenida aérea ali grandemente reta, além de desértica e banhada por muita luz do Sol. Eneida, a única que não carregava nada além de sua grande máscara de oxigênio em uma das mãos, com passos um pouco arrastados como os demais companheiros que trajavam as mesmas roupas de rígidos plásticos, ouvia atenta o acompanhante ao lado. – Existe um tipo de manual, feito por meu mestre de artes marciais em parceria com seu mentor, um falecido professor de imensa reputação em biofísica chamado Tupã, que tem possibilitado essas façanhas todas. Chamam o manual de a Técnica Elementar, um conjunto de instruções primariamente meditativas e secundariamente executivas que nos permitem perceber e lidar com faculdades capazes de interagir com o ambiente em seus níveis mais elementares, como os intermediados pela radiação eletromagnética.

– Sim, todo mundo fala desse manual do demônio, por meio do qual as pessoas parece que se tornaram verdadeiros bruxos com a única intenção de queimar quem encontram pelo caminho – disse Eneida com indignação. Ábaco se impressionou com o ódio expresso na fala da interlocutora contra o livro sobre o qual falava.

– Eu já tive contato com esse livro cujo conhecimento e prática tem realmente, como você diz, possibilitado muitos acontecimentos terríveis, como os covardes massacres que se espalham por todos os lados – dizia Ábaco nos olhos de Eneida. – Mas ainda não tive tempo para praticar nem entender melhor essa técnica. Apenas reparei que essas instruções aparentemente podem levar a vários caminhos se partidos de outros determinados. Em outras palavras, a técnica, se pensada longamente como teoria, nos faz percebermos o quão ampla é a ideia por trás dela. – De repente, a avenida sobre a qual caminhavam foi tomada por vários e fortes deslocamentos de ar que sopraram para os lados e para o alto a poeira do asfalto e da sarjeta. – Isso quer dizer possibilidades de intervenção no ambiente infindáveis. Mas, pelo que se tem notícia, nem todos, ou realmente muito poucos, já conseguem explorar a técnica nesses elevados níveis. E uma dessas pessoas é justamente quem espero encontrar no topo da Grande Torre.

– Um demônio ainda mais incontrolável? – disse Eneida ainda com uma expressão contraída na linha das sobrancelhas, de horror. – Capaz de incendiar várias pessoas ao mesmo tempo, com apenas um piscar de olhos? Um porteiro do inferno literalmente?

Sem reação, Ábaco deteve-se na intensidade de voz com que a interlocutora repudiava tudo aquilo que ele a ela contava. – Sim, é muito poder nas mãos de alguns. Mas, infelizmente, essa é uma realidade com a qual temos de lidar – disse.

– Então me parece que, ao contrário do que você diz que dizem, não temos na verdade nenhuma esperança de salvação – disse Eneida desiludida. – Não com as imensas desproporções sem garantia de controle como a de que você está atrás.

Em silêncio, Ábaco lamentou a perda do exuberante entusiasmo de há pouco da belíssima interlocutora que o salvara, inclusive.

O ar estava subitamente muito quente. As lufadas de vento, crescentemente constantes, pareciam ter saído de exaustores. O asfalto ardia que nem uma chapa sob fogareiro.

Ábaco e Eneida levaram as mãos às suas testas, enxugando o volumoso suor.

– O que está havendo? Esse calor não é normal – disse Ábaco sem fôlego, e parou de andar. Eneida o acompanhou em seu gesto, sem resposta, com o olhar assustado.

A já dita longa e também larga avenida aérea principiou a tremer, como num terremoto. Os outros onze à frente, com seus carregamentos às costas, também estacaram alertas. Ábaco recolheu os suportes com rodinhas até o chão de sua mochila militar, e, apesar do peso dela todo sobre ele, decidiu com passos acelerados ir até o meio-fio.

Ábaco aproximava-se do parapeito na borda da via muito elevadamente suspensa, a fim de olhar para baixo, quando Eneida, que o seguia, também se aproximou da divisa e Ábaco, não mais que um segundo à frente da companheira, se lançou impetuoso de volta para trás, com um clarão rápido sobre o peito e o rosto aturdido, praticamente em cima de Eneida. Uma onda ardente subira furiosa, cobrindo por cima em grande velocidade. Do outro lado, uma outra ampla labareda também se levantou, indo se juntar à primeira. A via aérea se cobriu com fogo. E os arcos de chamas turbulentas foram se estendendo rapidamente até o pai e os amigos de Eneida enquanto eles tentavam reagir se livrando de seus sacos e ligando seus rotores nos peitos.

Ábaco só conseguiu escapar, num primeiro momento, porque, após recuar subitamente com Eneida diante da onda de chamas, ele a manteve agarrada em um dos braços para com ela retornar aos tropeços pela avenida, ao passo que os arcos ardentes deitavam-se, fechando completamente o caminho.

O casal de jovens não precisou retornar muito para se ver livre do cerco de fogo, este que se concentrou à frente. Mas Ábaco, caído, momentaneamente desnorteado e com a mão insistentemente no rosto, parece que estava sentindo um grande desconforto exatamente em cima dos olhos.

– Pai! – gritou Eneida enquanto, com os cabelos e o rosto empapados de suor e a respiração resfolegante, tentava se recompor de um tropeço que a tinha levado ao chão junto de Ábaco. Seu pai e seus amigos ficaram totalmente cobertos pelas revoltosas massas ardentes que não cessavam de subir pelas laterais da avenida à frente.

Em desespero, Eneida botou sua grande máscara de oxigênio novamente na cara e avançou em direção ao cerco de chamas.

– O que você vai fazer?! – gritou Ábaco perplexo, tomando a frente da companheira mesmo sem conseguir enxergar direito, por causa da queimadura que provavelmente tinha sofrido na visão.

– Saia do meu caminho, não tenho tempo a perder! – disse com voz rascante pelo atrito com a máscara de oxigênio Eneida enérgica. Deslocou Ábaco com força para trás. – Procure um abrigo para você, porque eu tenho que entrar!

Contrariado, Ábaco reagia, embora em parte às cegas, mas, quando os rotores no peito de Eneida começaram repentinamente a girar velocíssimos, foi tomado por uma rajada de vento que o jogou ao chão com sua desajeitada mochila, novamente. Erguia-se com dificuldade, vendo, mesmo que precariamente, e impotente, a tão bela e nova amiga mergulhar nas torrentes de fogo por meio de uma abertura que criava com seu poderoso jato de ar brotado dos rotores ligados no peito.

– Não, Eneida! – gritou Ábaco. Com muito custo já de pé, avançou atrás de Eneida. Contudo, as chamas atrás engoliram totalmente sua companheira, e principiaram a se avultar ainda mais.

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