Anarquia Elementar

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Parte 2: Cap. II:

Era fim de uma tarde fria. O céu, do lado de fora da redoma gigante e entroviscado, desprendia um chuvisco contínuo. Já sob a redoma, a vastíssima Praça dos Quatro Cardinais fervilhava excepcionalmente de gente, praticamente todos jovens exaltados, mormente em torno da colossal torre-mor da cidade de Aerópolis. Dentro da torre central do sistema de torres, Anarco esbravejava na tribuna um discurso agressivo para uma casa lotada de tensos parlamentares. Atlas, surpreso com tamanho atrevimento vindo até mesmo de alguém como o seu mentor, num lugar igual àquele, o acompanhava, entre os ouvintes. Anarco ainda forçava sua retórica porque, sendo televisionado ao vivo, queria se fazer ouvido com atenção em toda a cidade.

– Agora, chegou a hora de mudarmos de verdade, por bem ou por mal – ousava dizer Anarco, porém ninguém era capaz de interrompê-lo. – A parcela mais respeitada de nossa população assim o clama. Queremos a restauração imediata, URGENTE, da meritocracia.

– Merecer a quem, Sr. Anarco – interrompeu um parlamentar com a expressão indignada, a paciência esgotada. Era Chang Ji, trajado de terno e gravata, de acordo com toda a formalidade do ambiente. Ninguém menos do que ele para apanhar um microfone secundário e criar coragem a fim de ignorar as regras sancionadas pela tradição ao retrucar o orador principal antes que terminasse, principalmente alguém como o atualmente tão poderoso e influente, além de igualmente petulante e arrogante, Anarco. Com certeza, a maioria dos colegas do reputado mestre de artes marciais não o desaprovou, pelo contrário, o aprovou pelo enfrentamento –, se são as máquinas, e basicamente as máquinas, que projetam e produzem para nós? – Anarco se irritou visivelmente com sua interrupção, mas não se admirou quando viu quem a fizera. – Máquinas, diferentemente de nós, não são mesquinhas, egoístas, não fazem caso de receber distinção pelos trabalhos que executam em nosso benefício.

– Quanta honra tê-lo aqui como meu indispensável interlocutor, Chang Ji, o primeiro e único discípulo de nosso grande professor Tupã, tão lamentavelmente falecido – disse Anarco procurando não perder a pose. – Talvez agora possa se explicar melhor a todos por que não tornou público logo a criação de seu professor, aguardou que ela nos condenasse com a destruição por pouco total de Aerópolis.

Apesar do jogo sujo do adversário, ao acusá-lo injustamente, Chang Ji não se intimidou: – Pelo mesmo motivo com que tentei evitar, ou pelo menos protelar, que ela, a Técnica Elementar, caísse tão cedo em mãos perniciosas que o senhor tão bem conhece. É de conhecimento de todas as autoridades em segurança pública de que procurei massificar a Técnica Elementar o quanto antes, mas dentro de um plano, pré-estabelecido entre nós, que não suscitasse sobressaltos na harmonia da estrutura social aeropolitana. Infelizmente, confesso que não consegui manter sob controle a condução de processo com tamanha envergadura. Fracassei, pois pessoas inconsequentes ou visando ao próprio benefício, agindo à revelia dos agentes da lei, se apropriaram indevidamente da Técnica e a disseminaram indiscriminadamente; não, corrijo-me: dis-cri-minadamente, o que é muito pior, porque somente entre os seus!

– Ah, que tédio, senhor Chang Ji! – Anarco também esnobou as indiretas aparentemente comprometedoras contra si. – Todos já estão carecas de saber dessa história. Que importa agora? É fato consumado! Sim, a turba especial já está reunida lá embaixo, enfurecida por cansar de esperar para ter suas legítimas reivindicações atendidas e, portanto, não pode ser ignorada.

Chang Ji agora calou-se ante o que era uma clara ameaça, ficando intimidado de verdade. Os outros colegas perceberam isso, reagindo de modo semelhante.

Em triunfo, Anarco abriu um de seus sarcásticos sorrisos. Notou que, finalmente, estavam lhe levando a sério.

– É isso, senhoras e senhores – voltou a dizer Anarco cheio de convencimento. – Chegou o momento de todos perceberem que estamos diferentes, MUITO diferentes. Estamos com um potencial inédito em toda nossa longa história evolutiva. Por isso, precisamos explorá-lo, e é urgente, pois se resume numa questão de sobrevivência de nossa própria espécie! Podemos ser dizimados a qualquer instante, ora!

O parlamento seguiu emudecido, acompanhando Chang Ji. Anarco prolongou a sua pausa, até que tímidos murmúrios começaram gradualmente a se ocupar do silêncio. Anarco, enquanto isso, saboreava o temor com que acuava e atarantava todos aqueles representantes do Sistema. O Estado, enfim, se ajoelhava a ele. Atlas ficou admirado. Chang Ji, por seu turno, estava decepcionado consigo mesmo, por não ser capaz de objetar todos aqueles absurdos proferidos por aquele insano inimigo do equilíbrio social de Aerópolis.

– Isso o que vem nos propor, Sr. Anarco, é uma completa perda de tempo e, acima de tudo, um grave insulto a toda a sociedade – disse em enfrentamento Chang Ji, atraindo novamente a atenção surpresa de todos. – Qualquer transformação em nossa sociedade passará pela aceitação de cada um de todos os cidadãos de Aerópolis. Nem um único ficará sem ter sua aprovação consultada e levada em conta. E esse processo exige e, se for o caso, exigirá tempo com estudos, avaliações e planejamento, além de execução por etapas. Por tanto, de nada adiantará pressionarmos com a pressa de ingênuo adolescente. Tenha paciência, muita paciência, e a transmita a seus tolos garotos. É tudo o que precisa ouvir.

E Chang Ji deixou subitamente o posto de interlocutor do eminente orador principal. Foi, para exasperação de Anarco, amplamente aplaudido por isso. Até Atlas, acuado, vacilou na certeza que tinha em seu mentor. Mas Anarco não se sentiu diminuído por sua reprovação pela grande maioria de seus colegas; aguardou o arrefecimento da entusiasmada aclamação contra ele exibindo um ar inabalavelmente prepotente acompanhado de um inconfundível riso escarnecedor.

– Senhoras e senhores – disse Anarco, ainda todo cheio de si, quando reparou que já podia ser plenamente ouvido –, me dei ao trabalho de vir até aqui para cooperar com todos. Percebo, desapontado, que ainda não estão dispostos a isso. Nesse caso, só espero que não seja irrevogavelmente tarde quando forem obrigados a vir, os senhores e as senhoras, todos atrás de mim. Passem bem.

Anarco também deixou a tribuna, saindo acompanhado de Atlas do estupefato parlamento logo em seguida. Um numeroso grupo de jornalistas rapidamente o cercou, mas ele o atravessou caminhando com pressa e vigorosamente aprumado com o ímpeto de uma locomotiva; chegou a jogar alguns ao chão, profissionais que se tropeçaram ao se afastarem subitamente diante da iminência de tomarem uma trombada do tão grosseiramente desenfreado parlamentar alvo das tentativas sem sucesso de entrevista. Anarco não deu a mínima para os infortunados, e Atlas o seguiu em seu vácuo.

Fora da Torre do Parlamento, na já sob um céu escuro Praça dos Quatro Cardinais, a tensão havia aumentado entre a concentração de pessoas que, tendo por meio de celulares e telões instalados do lado externo assistido à sessão no Parlamento, havia ficado furiosamente frustrada com o seu desfecho.

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