O Dodecaedro
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Cap. XI:
Depois de aniquilar Nero e parte de seu grupo, além de Atlas, Ábaco seguiu até o Hospital Central e o desocupou do restante dos comandados por esse doentio líder com sua mesma desmedidamente poderosa técnica de manipular as extensões perpendiculares do espaço. Com o faiscar de luzes que vazaram para além das janelas, trespassando, na verdade, paredes, revirou ele o vão de cada compartimento do imenso edifício tornado então um quartel general daqueles terroristas, levando no movimento dimensional, de fora para fora, todos os seus fanáticos ocupantes. Contra quem resistiu em frente à fachada por já se encontrar por ali, Ábaco, aparentemente sem grande esforço, pois nem se deu o trabalho de abrir os olhos, os arrastou abruptamente junto de suas bolas de chamas para um vórtice de vazio que ele criou dentro de outro vazio. Lançou-os todos a um lugar para além das laterais, aberto por um buraco branco.
Ábaco pretendia restabelecer as funções da instituição. Só que, para isso, precisava reunir várias pessoas com disposição para ajudar nesse objetivo comum e que, também, detivessem os conhecimentos médicos necessários, visto que muitos equipamentos e aparelhos robóticos do hospital se encontravam inoperantes por falta de manutenção ou por estarem simplesmente destruídos por vandalismo. O problema era que os poucos com coragem para sair dos subterrâneos de inúmeros andares da gigalópole não contavam com esses conhecimentos. Mas Ábaco insistiu nessa honrosa empreitada até onde podia, prestando os auxílios que conseguisse a quem deles necessitasse. Ele próprio, por meio de sua luz que operava em múltiplos planos, realizava reparos na superfície e no interior dos corpos dos doentes, reconectando suas partes rompidas no nível atômico.
Quanto mais praticava esses incríveis feitos de restauração do físico humano, mais Ábaco tomava percepção do alcance de seus poderes. E também mais gente o procurava. A notícia do que fazia começava a se espalhar pela arruinada Aerópolis. Muitos já o instavam a fundar um modelo de organização humana, o qual ele passaria a controlar pelo menos de início. Ábaco resistia a essa ideia de ele próprio governar os outros. Contudo, diante da necessidade premente de estabelecer um novo caminho para ordenar as relações humanas a partir dali, ele principiou a pensar sem parar na questão. Como sempre se norteava pelo princípio matemático do número 1,618, que significava a proporção de ouro na criação das coisas naturais ou artificiais, ele imaginou empregá-lo como baliza nessa tentativa de reconstrução da sociedade de Aerópolis. De fato, essa cidade só chegou, até então antes de seu Grande Revés, onde havia chegado em termos desenvolvimento tecnológico e social porque o conjunto de seus habitantes acataram todas as resoluções geradas pelo Orbe, um instrumento que funcionava poderosamente apenas por cálculos. Ou seja, os aeropolitanos já conheciam o caminho de números da perfeição, sendo eles inclusive fruto dela. Mas isso não queria dizer que seria normal e, por consequência, fácil reimplantar essa ordem das equações entre nós, visto que todos tínhamos mudado, tanto no sentido individual quanto coletivo. Agora, nós conhecíamos uma técnica que simplesmente nos descaracterizava como humanos. Tínhamos nos tornado uma outra espécie, cuja maneira de se organizar socialmente requeria novas interpretações pelo Processador Central. Estávamos de repente dotados de poderes de variados tamanhos que tinham elevado nossa vaidade a patamares muito acima do que poderíamos conceber antes de nossa transformação. Queríamos todos conhecer os nossos novos limites, exatamente demarcados pelos dos outros, principalmente agora, neste ambiente profundamente degenerado em que nos encontrávamos depois dos Ataques Verticais.
Ábaco suspirou. – Talvez Gaio tivesse razão: talvez não houvesse um meio de voltarmos a ser o que éramos anteriormente. Com tanto potencial, provavelmente ninguém estaria igualmente disposto a fazer tantas concessões para um bem comum. Recusar-se-iam em enxergar os incalculáveis benefícios para todos resultantes da soma, negativa?, de tantos e tão grandes esforços. – Ábaco balançou negativamente sua cabeça, novamente em profundo desalento. – Não precisávamos ter evoluído. Nossas ideias, repensadas a velocidade da luz nos circuitos das máquinas, já tinham feito isso por nós. Então, como voltar a esse estágio, neste momento? O valor 1,618 nos revelava relações tão belas... que talvez fosse válido fazer as pessoas enxergá-lo, de um modo ou de outro.
Ábaco começou a perceber usos de seus planos de luz para além dos reparos meramente físicos, mesmo que esses já alcançassem as conexões de dados de Aerópolis, visando à reativação do Orbe por toda a cidade. Seu foco, a despeito de todas as considerações negativas que isso imediatamente suscitava (para si mesmo), passou a ser a própria mente das pessoas. Não havia outro jeito. Precisava “abrir a cabeça” delas, nem que fosse à força.