O Objeto mais Pesado que a Terra
Ouça:
Cap. VI:
– Gaio?! – exclamou Natura incrédula. Acabara de atender o interfone, quando abriu a porta de seu apartamento para o filho. Abatido, sujo, barbado e com a cabeça encoberta pelo capuz preso ao hábito encardido trazido do Mosteiro dos Esquecidos, Gaio encontrava-se até um pouco, para não dizer bem, irreconhecÃvel.
– Mãe! Não! – disse Gaio erguendo a mão no intuito de afastar a mãe, que avançara para cima dele cheia de entusiasmo e alegria. – Por favor, não estou em condições de abraçar e ser abraçado. Vim até aqui porque esta talvez seja a última vez em que voltamos a nos ver – Gaio nunca fora tão seco com a permanentemente enlutada mãe. – Vendo-a, cumpro a minha última promessa que lhe fiz. Agora não posso lhe fazer mais, em virtude de que não garanto que vou cumpri-la.
– Gaio, você não vai deixar sua mãe sucumbir de vez em seu luto, ou vai? – Natura também tinha voltado à sua severidade tão lhe habitual.
Ante o protesto veemente da mãe, Gaio, relaxando por força de um susto o cenho intransigente, pareceu haver repentinamente acordado para o sofrimento que cronicamente a atormentava, que contava até com uma cor inapagável.
– Ainda há esperança, mãe! – a última palavra antes do pronome não tinha sabor para Gaio, ele percebia profundamente estarrecido e amargo.
– Filho, como tem coragem de me falar de esperança, se acabou de me afirmar que não pode me prometer nada mais?!
Sem respostas, Gaio ficou a observar aquela mulher que tinha sido sua mãe até então.
– Mãe... Como você fica bonita de luto – disse Gaio admirado. – O crepe combina muito bem com os seus cabelos e a severidade natural de seu olhar.
Agora foi Natura quem mergulhou os olhos na pessoa sensÃvel e perceptiva que a maturidade conservara no filho. Apesar disso, Gaio parecia-lhe tão mudado. Mas provavelmente isso se devesse à impressão que a aparência tão deprimente agora dele lhe passava. A despeito do pessimismo com que sempre encarou as coisas, jamais poderia imaginar que a última imagem do filho tão talentoso e dedicado seria a da plena derrota. Mas talvez não... Porque seu julgamento, provavelmente muito incompreensivo, era resultado de um mero ponto de vista seu.
– Mãe, tenho de partir já. Antes, gostaria de tomar um banho, pois não quero ir sem lhe dar um abraço.
– O último? – com ironia, Natura não escondia o profundo desprazer que sentia diante daquelas decisões do filho. Gaio tinha os motivos dele, mas isso não importava a ela.
– Mãe, não disponho de escolhas! Portanto, seja compreensiva comigo, por favor!
– Gaio! – Natura havia ficado impaciente. – Como quer que eu o compreenda, se pretende se afastar de mim para sempre! Porque me visto assim, ou nunca rio, acha que sou insensÃvel como uma viúva-negra?!
– Os olhos da mãe, Gaio reparou em silêncio desconcertante, estavam rasos de uma água que, sabia ele, dificilmente transbordava.
Imediatamente, os olhos de Gaio também se encheram de lágrimas. Ele os sentiu arderem como se o lÃquido tivesse forçado com dor suas pálpebras enferrujadas a se desemperrarem. Declinando a cabeça, refletiu que, à semelhança da mãe, a despeito das adversidades acachapantes que enfrentavam, não conseguia chorar por nada, diferente de agora.
– Mãe – Gaio reergueu a cabeça, sem vergonha de mostrar as lágrimas que, incontidas, já lhe escorriam pelas faces gordurosas, irregularmente peludas –, a mim não importa se vou terminar salvando Marina, mas sim terminar tentando. Por mais absurdamente distante que esteja, ela, mesmo que profundamente a contragosto, espera isso de mim.
Igualmente poucas vezes antes tão impetuosas, as lágrimas de Natura venciam-lhe a aridez do semblante e, enfim, vertiam copiosas pela pele escaldada de inconformismo como um deserto.
– Sim – Natura mexia leve e positivamente a cabeça. –, eu entendo, filho. Na verdade, sempre o entendi. E seus gestos, por mais extremos que sejam, não devem me assustar. Eles são o que eu também sempre esperaria de você. Por isso, tome o seu banho – Natura se afastou para o filho passar.
Mais tarde, o abraço entre Gaio e a mãe durou o suficiente para preocupá-los e entristecê-los abissalmente: tinha realmente jeito de derradeiro dos derradeiros.