Para-raios

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Cap. V:

Usando uma vestimenta laranja-açafrão que combinava com a cor de seus introspectivos olhos, justa e leve em razão da destinação esportiva, Gaio, equilibrando-se graciosa e verticalmente numa perna – tendo a outra dobrada pelo pé dela erguido e os braços estendidos em direções opostas –, as pontas dos dedos mantidas firmemente unidas iguais aos bicos das aves, passava ele a impressão que pretendia alçar voo num dos pátios da Escola Bodhidharma onde treinava a sós kung fu, como a garça branca lhe estampada no tecido de naylon sobre o peito.

Era começo de uma manhã de sábado fresca, sob um céu limpo. O Sol começava a despontar, mas Gaio, ao contrário do que um desavisado poderia imaginar, já estava encerrando sabiamente sua sessão de exercícios extenuantes antes que o astro Rei principiasse a rechinar. Os pátios se achavam cheios. Contudo, em virtude de seus pródigos tamanhos, todos os esportistas dispunham de suficiente espaço para praticar. Diante da agitação e de cantos alegres, que saudavam a liberdade, de diversos pássaros a empoleirar de galho em galho nas árvores frondosas que ornamentavam as orlas dos pátios, Gaio realizou mais alguns movimentos finais, calculados passos, torções suaves do torço e deslocamentos ligeiros dos braços que terminavam de forma abrupta; cessando, pegou uma toalha próxima, de dentro de sua sacola deixada a um canto. Enxugava o suor que escorria pelo rosto, quando alguém se avizinhou e lhe pousou a mão num ombro.

– Por que a preferência ultimamente pelo estilo garça-branca? – quis saber o jovem Chang, trajando uma calça comprida de moletom com camiseta e portando uma prancheta na mão.

– Bom dia, mestre Ji! Não sei se o senhor vai acreditar em mim, mas, noutro dia desses, eu presenciei uma garça engalfinhando-se com um macaco tal e qual aquela mesma... na verdade, parecida..., luta da lenda que um lama tibetano dizia ter testemunhado.

Chang se mostrava sinceramente interessado e inclinado a acreditar, com sua atenção e riso da graça do relato inusitado, não do relator.

– Vindo de você, não é difícil de acreditar – disse Chang. – Sei que sempre dedica tempo para observações delongadas, acuradas e analíticas do ambiente. Desse modo, estará sempre sujeito a testemunhar acontecimentos inesperadamente ímpares de tudo o que o cerca de maravilhoso e natural. – Pois é – Gaio estava tão animado em poder contar a um mestre de kung fu sua observação que, tinha certeza, deveria ser muitíssimo incomum, que nem se preocupou em acabar se sentindo bobo. – Não cheguei a ver o motivo da briga. Lembro-me de que a ave e o símio se encontravam sobre galhos bem finos de uma árvore às margens de um rio – Gaio até gesticulava no intuito de ilustrar seu relato. – O macaco, robusto, sabe, avançava agressivo, saltando pesado de galho em galho, guinchando com estridência, como se achasse muito irritado com a adversária; pois a garça, impassível, deslocava-se em fuga com agilidade ao saltar suave, impulsionada por um bater de asas que lhe conferia uma breve silhueta de três vezes o tamanho de quando estavam recolhidas. Pois ao abrir as asas, a garça fazia um barulho semelhante ao som saído de um grande guarda-chuva sendo armado, sabe, o que assustava e acuava um pouco o símio. E não é que a ave, astutamente, foi conduzindo o primata a galhos cada vez mais frágeis, até que um se quebrou e o precipitou na água. Ainda bem que a margem era rasa, dando pé para ele. Coitado do macaco, ao menos a lição tinha lhe valido: não voltou mais a encrencar-se com a garça.

– E você, extraiu alguma lição do que presenciou? – Sim. A de que agilidade e astúcia superam brutalidade e afoiteza em um combate de aparentes desiguais.

– Exatamente o que levou o lama, segundo a lenda, a criar o estilo garça-branca – disse Chang Ji satisfeito.

Chang Ji acenou para que caminhassem um pouco entre os pátios, chafarizes e árvores que projetavam boas sombras.

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