Dando por Falta de um Beijo de Boa-noite
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Cap. VIII:
Na época, o episódio incomum de terror no Museu de História Natural provocara efervescente curiosidade e interminável questionamento na população de Aerópolis. Por motivos de segurança, as autoridades quiseram abafá-lo, mas não conseguiram o bastante: houvera grande quantidade de testemunhas no local do embate aparentemente sobre-humano. Se os relatos das testemunhas não tivessem sido tão eloquentes e parecidos nos detalhes, na Internet – o único e completo meio de comunicação audiovisual que interconectava cada cidadão de Aerópolis –, as autoridades bem que poderiam ter sido ajudadas pelo natural ceticismo das pessoas diante da natureza realmente fantástica do caos ocorrido no museu. Mas esse não foi o caso. Os aeropolitanos desconfiaram de que algo estranho tinha acontecido lá dentro. Tanto assim foi que, logo após Chang Ji passar pelo hospital e sair de tronco engessado e com algumas gazes e esparadrapos pela testa e braços, os comunicadores de massa e representantes de vários grupos políticos em assuntos de segurança pública o pressionaram com insistência por explicações. Mormente os representantes, pessoas mais inteiradas do que a maioria em projetos sigilosos e em processo de aprovação de crucial interesse público, entre os quais o de treinamento massificado na Técnica Elementar, souberam, pelos registros de incontáveis câmeras de vídeo instaladas no referido museu – registros tais que, para garantir o indispensável direito à privacidade dos habitantes de Aerópolis, só eram verificados em episódios extraordinários e criminosos como o ocorrido –, que Chang e seus amigos tinham sido o alvo direto dos ataques aparentemente extranaturais dos criminosos. Alguns chegaram a acusá-lo em público de estar perdendo todo o controle da situação ao permitir que seus planos, acertados de antemão com os especialistas em segurança e os administradores de políticas e recursos públicos para serem estritamente confidenciais – em virtude de sua natureza ambiciosa e revolucionária, com potencial profundamente modificador do modelo atual de sociedade –, tivessem caído nas mãos de gente perigosa e sem o menor dos escrúpulos, que desde então passou a oferecer um risco incalculável aos cidadãos comuns.
Entre a cruz e a espada, Chang, num primeiro momento, havia se silenciado de todo em seus depoimentos, mas acalmara temporariamente seus irrequietos inquisidores com a promessa sem falta de explicar, se possível, tudo mais tarde, pois precisava de um tempo, não sabia, na época, se seria melhor aproveitar a ocasião de grande repercussão para divulgar suas intenções urgentes com relação à Técnica Elementar e à população aeropolitana ou se esperava a situação toda arrefecer para preparar-se mais cuidadosamente antes de passar à próxima e derradeira etapa a fim de concluir a importantíssima missão lhe confiada por Tupã. Na verdade, ele havia mesmo era ficado em choque com tamanho poder visto na prática que a Técnica Elementar tinha proporcionado a algumas pessoas, e em tão pouco tempo. Ao analisar um pouco mais demoradamente a situação decorrida do pandemônio no museu, porém, Chang Ji julgou mais tarde que não podia mais ter se dado ao luxo de postergar tanto o momento de tornar pública a Técnica Elementar. Não podia ter hesitado. Infelizmente, alguns grupos políticos conservadores, por exemplo, muito temerosos com o que poderia advir da concretização de seus planos, tinham começado a fazer pesada campanha junto ao Congresso para demovê-Lo de qualquer ideia ou proposta de treinamento das massas fosse em técnica conhecida ou desconhecida. Essa movimentação e articulação de dissuasão contrária a ele, Chang, acabaram causando um impasse de solução indefinida entre as autoridades, prejudicando-o ao fazer que indeferissem temporariamente os requerimentos das construções de todas as escolas elementares de que necessitava para inaugurar em breve o treinamento massificado da Técnica Elementar.
Para piorar, Anarco havia dado mostras de até onde estava disposto a chegar para se impor aos mecanismos legais que regulavam a vida em sociedade de Aerópolis. Chang especulou os motivos maiores que teriam levado Anarco a agir da forma como agira sem se preocupar com as câmeras internas do museu. Uma possibilidade, muito preocupante, foi, acreditou o jovem mestre, que ele, Anarco, agira exatamente com o propósito de se exibir espetacularmente perante as câmeras para que, uma vez tendo as imagens corrido toda a gigalópole com grande repercussão, ele pudesse ter impressionado futuras pessoas, sobretudo jovens, sujeitas a ser recrutadas na clandestinidade. Isso, porque Anarco, embora ainda não houvesse dado as caras mais de um ano depois de tudo o que se passou no museu, vinha se fazendo sentir de modo crescente ultimamente, Chang começou logo a perceber, em discursos sobre grandes questões sociais por parte de não poucos parlamentares.
No marco zero de Aerópolis – no interior daquilo que era de fato uma imensurável cidade escalonadamente vertical cercada por outra ainda maior (o restante de toda urbe, de fato), pelo menos em extensão territorial –, vestindo um casaco aberto sobre o pijama escuro, chinelos calçando pés com meias, olhos piscantes para aliviar a secura lacrimal temporária e a pungência da luz artificial por um momento desacostumada, e a cabeleira negra e solta desgrenhada, Natura, nem assim deixando de ser mostrar atraente, aguardava com ar severamente preocupado o elevador da Torre Central subir até o último andar, a Biblioteca do Topo, a 4 mil metros por minuto. O elevador, que subia pela área externa do maior edifício habitacional já construído pelo homem, dispunha de uma lateral hialina para observação da cidade que ia ficando, apesar de sua altitude troposférica, progressivamente mais embaixo. Um sistema inteligente controlava, ainda, sua pressão atmosférica interna, a despeito do encapsulamento do ar de fora pela redoma gigante, controlava a aceleração em subidas e descidas e a desaceleração em paradas iminentes sem causar solavancos.
Desembarcada, Natura seguiu pelo amplo saguão de entrada, de tons pastéis e onde expunham em estado permanente uma réplica da prensa de tipos móveis inventada por Gutenberg, local em que consultou nos computadores a localização do filho pelo nome. Obtendo, em instantes, um mapa digital em um tablet, ela soube que Gaio se encontrava numa seção da Grande Sala de Física, próxima às panorâmicas janelas corrediças da mais alta varanda da história de construções humanas.
Por a biblioteca ocupar toda ela uma absurda área com mais de 30 milhões de metros quadrados, Natura foi obrigada a tomar um dos vários transportes silenciosos que percorriam todas as salas e o qual consistia numa câmara para até 21 pessoas, tal qual um compartimento de elevador, mas de deslocamento horizontal.
A Biblioteca Central se constituía num emaranhado de corredores ligando inúmeras salas apinhadas de enormes estantes que informavam digitalmente, via um painel, a localização e o conteúdo de cada livro guardado. Tais estantes eletrônicas atingiam 15 metros de altura e eram dotadas de um fascinante sistema de deslocamento de livro a livro que, uma vez o volume desejado, via o painel ao nível do chão pelo interessado, sendo destacado, era levado em encaixe e desencaixe até ele, o interessado, automática e silenciosamente. E tão impressionante quanto o tamanho do acervo dessa vastíssima biblioteca, reunindo num só lugar todo o registro de conhecimento humano sobrevivido ao longo da dura história de percalços da escrita, era a pujança do teto abobadado de cristal agora todo translúcido a realçar as contas de um firmamento celeste noturno jamais permanentemente “perto” como agora.
Desembocando na Grande Sala de Física, próxima do Observatório Central, uma sala circular cercada de acessos a seções principais de temas correlacionados subdivididos – como Cinemática e Dinâmica de Mecânica, por exemplo – e estampada ao meio, sobre um carpete cinza-claro, com uma grande figura do modelo conceitual clássico do átomo de Niels Bohr, Natura seguiu se orientando pelo mapa digital dinâmico em seu tablet à procura da seção do filho. Cruzando o acesso certo, pelo menos aquela parte da Biblioteca, ela reparou, estava toda vazia, não havia vivalma a consolá-la ao provar-lhe que Gaio não era o único a madrugar ali. Entre largas mesas redondas equipadas com telas de cristal líquido exibindo listas de catálogos, caminhava naturalmente, sem se preocupar com os ruídos provocados por seu calçado, os quais eram abafados pelo carpete estampado com pinturas de incontáveis fórmulas matemáticas, detalhes que conferiam ao chão a curiosa impressão de estar borbulhando de formigas.
O silêncio engolfante de repente dera lugar a uma respiração suave e compassada vinda de um canto da seção adentrada por Natura, de trás de pilhas de livros em cima de uma grande mesa redonda. Natura contornou a tal mesa, atentando curiosa para os nomes de tais livros: monotemáticos, muitos com mais de mil páginas, tratavam de Fusão Atômica, Entrelaçamento Quântico, Antimatéria e um, especialmente aberto sob a cabeça repousada de lado de um Gaio agora revelado, pelo título do cabeçalho da página, dava para ver que versava sobre a Teoria M. E do lado, em pé por um suporte, ainda se encontrava o exemplar impresso da Técnica Elementar do filho.
Gaio, notou a mãe, parecia esgotado, desabado sobre aquela mesa. Dormia um sono desconfortável, desinquieto, percebia ela melhor de perto. Às vezes, estertorava, e seu estertor quase que estrondava naquele silêncio perturbadoramente sepulcral daquela seção. Ela levou a mão à testa dele e constatou, apreensiva, que se achava febril.
– Gaio, acorde, meu filho! – chamava Natura abismada. – Vamos, acorde, já passa da meia-noite! – Não, não, não vou – delirava, em resposta, o jovem agora um adulto, mas mais esguio que o normal, a voz devidamente engrossada em função da maturidade hormonal.
Sua mãe o chacoalhou desesperada.
– Não, os especistas vão voltar! – bradou Gaio num delírio final que acordou a si mesmo.