O Eclipse Soturno
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Cap. XVII:
Era quase meio-dia do dia seguinte e, embora o céu estivesse limpo, sem um fiapo de nuvem sequer errando pela abóbada planetária, a cidade muralha de Aerópolis se achava iluminada por uma luz solar estranhamente fraca, esmaecida. Os numerosos edifÃcios, avenidas, viadutos aéreos, monumentos, praças, veÃculos de transporte coletivo e particular e as próprias pessoas refletiam um brilho pálido, desmaiado, que lhes conferiam um aspecto lúgubre, funesto como o de um templo alumiado por velas bruxuleantes. A causa da obstrução parcial da luz do Sol era um objeto espacial circular anteposto exatamente ao disco solar. Um pouco menor que o disco lunar, o tal objeto permitia em comparação maior passagem de luz do que um eclipse total e natural do Sol pela sobreposição da Lua, o que estava suscitando a curiosidade em uns e também o pânico em outros. E o extraordinário e imprevisto fenômeno havia levado a maioria dos habitantes à s ruas e a lugares públicos para observarem-no e comentarem-no com frenesi uns com os outros.
Ainda sob o humildoso – ou, para alguns, humilhante mesmo – efeito inacreditavelmente centrifugante sobre seus dogmas antropocêntricos perante a visita de tão tecnologicamente superiores visitantes dos confins cósmicos, os habitantes de Aerópolis, em certos lugares onde já circulavam os impactantes boatos acerca das supostas reais intenções dos alienÃgenas, observavam o eclipse parcial do Sol com muita desconfiança e pavor, tomando-o por um terrÃvel presságio. Muitos, inclusive, já cismavam com a espera de um sinal de alerta para evacuarem a cidade.
– Gaio, ainda bem que o encontrei em casa! – exclamou Maia ao atravessar até os fundos o apartamento de Gaio, chegar a um terraço curto, onde estava instalado um observatório particular, e encontrá-lo lá dentro sentado diante de um telescópio apontado, entre a abertura estreita da cobertura abobadada de metal em um quarto de esfera, para o eclipse soturno. Gaio se levantou e ela correu a abraçá-lo. – Está ferido, amor?!
Como Gaio vestia uma camiseta sem mangas, uma versão adulta igualmente branca da mesma regata que tanto usava quando adolescente e que ostentava o número 137 em preto em grande parte das costas tal qual a numeração de um uniforme esportivo, Maia entreviu uma faixa de gaze em volta do tronco dele.
– Foi apenas um corte que levei ontem, nas costas. Não foi nada demais – Gaio a beijou para despreocupá-la.
– Gaio, você deve sair daqui já – disse Maia ainda mais apreensiva, como se o beijo tivesse operado um efeito oposto. – Não sei direito por que razão, mas todo mundo está comentando nas redes sociais que, a mando deles – Maia apontou a fronte para a abertura da cobertura, para fora e para o alto –, as autoridades de Aerópolis estão atrás de você por você se constituir, segundo elas, numa ameaça para nós. Se permanecer aqui, vão capturá-lo e entregá-lo a eles. Tem que fugir o mais depressa possÃvel, já estão vindo para cá, Gaio!
Fitando introspectivo os olhos da amada, ainda com ela nos braços, Gaio levou mais de meia dezena de segundos para compreender o que ouvira, ou acreditar naquilo.
– Eu, fugir? Só se for para poupar a integral integridade fÃsica deles, de todos eles! – irritado, disse Gaio em tom sarcástico ao largar Maia. – Eu me constituir numa ameaça a eles? Como? Onde estão as provas? São um bando de verdugos que só pensam na preservação da própria pele nem que seja atropelando as nossas em tese invioláveis garantias individuais. Meu pai estava certo quando idealizou o fortalecimento do indivÃduo contra os interesses de uma coletividade, quando esta não raro não passa de uma soma de estúpidos.
Revoltado, Gaio foi dar mais uma espiada pela abertura estreita da cobertura, agora a olho nu, no objeto que continuava a eclipsar o Sol. Imóvel, Maia ficara assustada com a erupção do amado.
– Corja de submissos! – disse raivosamente entre os dentes Gaio, lançando um olhar feroz para o eclipse. – Estão se submetendo aos assassinos de meu pai. Covardes! – Gaio fez uma pausa que não deixou se prolongar. A pressão para extravasar-se era tanta que não aguentava segurar. Maia achou que ele, meneando a cabeça em sucessivas negativas inconformadas, queria esmurrar alguma coisa. – Mas, afinal, quantos carrascos há no Universo? Sabe – Gaio esbravejava, mas não se dirigia à Maia, como se estivesse encetando um solilóquio cada vez mais colérico –, descobri que todos nós, não importa o tamanho da compaixão que julgamos dispensar aos outros, devemos toda a gloriosa existência à nossa inerente condição de carrascos. Maior ou menor, somos todos carrascos. Dada a nossa nata obtusão, não percebemos ou ignoramos a escancarada obviedade.
Calando-se, Gaio abaixou a cabeça. Parecia esgotado por dentro, ou tragado por um vácuo, aquele vácuo que sempre o arrastava quando procurava entender a existência. Voltava a menear a cabeça de indignação e ao mesmo tempo ria com sarcasmo. Mas estava rindo de si próprio, da condição espiritual miserável em que se achava. A percepção tão aguda que auferira por intermédio de tanta leitura e de um espÃrito tão permeável era sua maior conquista, por outro lado sabia muito bem que a elucidação profunda de tudo de inerentemente ruim que também o cercava estava tornando-o cada vez mais insuportavelmente árido por dentro. Não existia esperança na desilusão.
Maia permanecia chocada. Não conseguia entender o que atormentava tanto o amado, mas percebia que deveria ser algo que jamais o deixaria em paz.
– Por mais que eu não queira, também nunca deixarei de ser um carrasco. Como tal, então, talvez seja o caso de acabar-me nas mãos de meus semelhantes – disse Gaio e finalmente olhou para a presença de Maia. – Desculpe-me, amor. Não me leve a mal a exaltação ridÃcula, por favor.
– Não, Gaio, não se entregue a eles, por favor!, por mim! – suplicou Maia ao correr de novo para os braços do amado. – Fuja!, e me leve junto. Estou disposta a largar tudo por você!